“Quem não for acessível, vai ficar para trás”


Você sabia que, de 14 milhões de sites ativos da internet brasileira, 99% não estão acessíveis para pessoas com deficiência? Se não sabia, aposto que compartilha da mesma reação que a minha ao ler isso: espanto. O dado é resultado de uma pesquisa do Movimento Web Para Todos (MWPT) em parceria com a BigData Corp, realizada em 2019.

Em meio à tanta discussão sobre inovação, transformação tecnológica, avanços digitais e experiência do cliente, onde é que está, exatamente, a pauta sobre acessibilidade que, na verdade, deveria permear todas as outras? Por que deveria? Bom, muito simples. Segundo dados do IBGE, pelo menos 45 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência, o que representa quase ¼ da população. Bastante expressivo, não é? 

A coluna desta semana é muito especial. Primeiro, pela relevância do assunto. Segundo, porque trago um exemplo não só de empreendedorismo puro, mas também de alguém que teve - e tem - um olhar visionário e empático diante do mundo e foi eleito um dos 35 jovens mais inovadores do mundo, segundo o MIT

Ronaldo Tenório é formado em Comunicação Social e, desde sempre, um apaixonado pela tecnologia. Da junção desses dois mundos, nasce a Hand Talk, ainda na época da faculdade, em 2008. Talvez você não conheça a empresa por nome, mas pode ter ‘topado’ com o Hugo, mundo digital a fora. A Hand Talk é uma empresa que disponibiliza um tradutor automático de textos em websites para a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Hugo é o adorável intérprete virtual da marca, que faz a tradução para a língua de sinais com apenas um clique.

Ronaldo Tenório com o Hugo, intérprete virtual da Hand Talk | Foto: Jr Lima



A ideia nasceu em um desafio acadêmico e ficou engavetada por quatro anos. Já em 2012, junto com Carlos e Tadeu, seus sócios, Ronaldo decidiu inscrever o projeto em um desafio de startups. “Foi quando tudo começou a propagar. Ganhamos o primeiro prêmio, um investimento e a brincadeira começou a ficar séria. A empresa começou a crescer e iniciamos essa ‘saga’ Brasil a fora”, relembra. 

Cerca de 80% das pessoas surdas do mundo dependem exclusivamente da língua de sinais para obter informação e se comunicar. É o que mostra a WFD (Federação Mundial dos Surdos, na sigla em inglês). Isso porque não entendem, ou possuem dificuldade para ler e escrever. 

Não tem ninguém com deficiência auditiva na família de Ronaldo. Ele olhou para o lado e praticou a famigerada - mas pouco exercida - empatia, e deixou seu espírito empreendedor aflorar. “Percebi que havia um problema de comunicação de surdos e ouvintes e que, talvez, com o auxílio da tecnologia, poderia fazer alguma contribuição. Comecei a pesquisar sobre esse universo, notei que não existia nada parecido no mercado e resolvi colocar a ideia no papel”, conta. A maior parte deles é alfabetizada em línguas de sinais e depende delas para se comunicar. 

Os dados mostram e Ronaldo reforça: o tema acessibilidade ainda é deixado de lado. Para ele, menos do que há cinco anos atrás, principalmente por estarmos passando por um momento em que, como ele coloca, “por bem ou por mal, as pessoas precisaram pensar em acessibilidade.” No mundo digital, ainda mais. 

O expediente, para muitas pessoas, passou a ser 100% dentro de casa. Como principal necessidade, meio de informação e comunicação: recursos tecnológicos. O momento evidenciou ainda mais a carência de acessibilidade nesses processos. 

O empresário reconhece que o estudo feito pelo MWPT é um demonstrativo de que o mundo digital é um território que não está sendo pensado para a pessoa com deficiência. Mas como quase todo brasileiro, não perde o otimismo. “Acredito que está começando um movimento e isso é um caminho sem volta. Nos próximos anos a gente vai ver uma onda mais forte em tornar ambientes mais acessíveis. Aliás, não só de tornar, mas de construir do zero um ambiente já pensado para ser acessível”, projeta. 

Na visão dele, uma das explicações para o fato de que apenas 1% dos 14 milhões dos sites tenha passado nos testes de acessibilidade do estudo, é a falta de conhecimento. “As empresas não pensam em acessibilidade no dia 1 (um) do projeto. A maioria acha que acessibilidade é uma etapa final. Elas constroem todo o prédio e no final, coloca a rampa. Mas elas deveriam ter pensado na rampa no momento da formatação do prédio e não depois que construiu”, enfatiza. 

“Isso acontece muito com acessibilidade digital. As pessoas criam um site, aí pensam ‘agora quero colocar acessibilidade digital’. O plug-in da Hand Talk ainda consegue ser colocado no final, óbvio que com algumas restrições, caso o site não esteja preparado para recebê-lo, mas a acessibilidade como um todo vai muito além da acessibilidade em libras, e ela precisa ser pensada previamente”. 

Para o CEO da Hand Talk, o cenário será outro quando as pessoas por trás das organizações tiverem mais conhecimento de causa e tentarem levar isso para o momento inicial do projeto. “A ideia é que quem não for acessível, vai ficar para trás”, aponta. 

Via de mão dupla: impacto social + oportunidade de negócio 

Ronaldo levanta uma questão interessante: quem pensa na acessibilidade, não atinge apenas a pessoa com deficiência, mas também todas as que estão a sua volta. “Imagina uma marca que está 100% acessível para surdos e cegos, pessoas com baixa visão, deficiência auditiva, e por aí vai. A empresa impacta a família dessa pessoa. Todos perceberão que se trata de uma empresa engajada, preocupada. E assim, se tornarão replicadores, farão ‘propaganda’ da marca”, exemplifica. 

As empresas perdem (e muito) por não serem inclusivas. O empresário explica que muitas organizações brigam por fatias de mercado absurdamente pequenas, competem, gastam milhões em anúncios para um público específico, e elas esquecem que têm 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil e grande parte desse público precisa, urgentemente, de conteúdo acessível. “Essa grande parcela não está sendo vista pelas organizações porque elas não têm a porta aberta. Deixam de ganhar um grande mercado, que poderia estar comprando a solução dela, consumindo a informação dela, estar se relacionando com ela”, completa Tenório. 

O papel social de uma empresa mais justa e inclusiva precisa existir e ser parte de seu DNA, estender-se por toda a sua atuação. Inclusive, Ronaldo aproveita para lembrar que as empresas que não são acessíveis podem sofrer penas, sentir a famosa “dor no bolso”, graças a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146), que obriga a acessibilidade nos sites, por exemplo. A pandemia acelerou tanta coisa. E a acessibilidade, como fica? 

O empreendedor, como muitos especialistas, também acredita que a pandemia avançou significativamente a transformação digital, do tipo seis anos em seis meses. E pensar sobre acessibilidade veio no pacote, como consequência. 

“É óbvio que as pessoas estão dando seus primeiros passos, estão colocando intérpretes de libras nas lives, começaram a perceber que legendas são necessárias nos vídeos e claro, que precisam de sites acessíveis. Até porque, os próprios funcionários estão trabalhando de casa e a comunicação precisa ser acessível… Então esse período contribuiu com esse ‘despertar’”. 

Ele acredita que veremos os reflexos da acessibilidade no meio digital anos a frente, mas o engajamento precisa começar agora. “É uma jornada para as empresas. É difícil demolir todo o prédio construído e construir um novo. Mas os próximos, construídos a partir de hoje, precisam contar com a preocupação de ser acessível. É uma mudança lenta, mas ela consegue trazer um impacto gigantesco, imensurável, ainda para as organizações que estão começando a pensar nisso agora.” 

Profissionais que possuem a habilidade complementar de criar processos, sistemas e experiências acessíveis, já são profissionais com diferencial de mercado, e eles serão cada vez mais requisitados. 

Para Tenório, sempre há tempo e o primeiro passo é adquirir conhecimento, começar a absorver conteúdos relacionados, pedir auxílio às pessoas que entendem um pouco mais sobre o assunto. “O grande ponto é dar o primeiro passo. Não existe empresa 100% acessível da noite para o dia. É uma jornada. É algo que começa e nunca tem fim. Sempre serão necessários ajustes, melhorias, mas precisa começar, com algo simples mesmo, depois é possível aumentar o nível e ir se aprofundando.”
 
Ele ainda nos ajuda a entender por onde é possível começar. Sabe aquele texto alternativo, que temos visto em alguns pontuais perfis com a chamada #paracegover? Já é o começo de um processo de inclusão. “Ler artigos sobre o tema, escrever textos alternativos, começar a conhecer mais de perto esse universo, mergulhar no assunto e claro, aplicar novas - e necessárias - implementações”, indica. 

APP Hand Talk 

Mais uma super dica para você que quer aprender mais sobre acessibilidade. Além do site, a Hand tem um aplicativo que funciona como um tradutor de bolso, que traduz texto e voz automaticamente para Libras. Lembra do Hugo? Na plataforma, é ele quem será seu professor através da seção “Hugo Ensina”, com uma série de vídeos. O app é gratuito e está disponível para Android (na Play Store) e iOS (na App Store). Incrível, né? Então aproveita!

Até a próxima!

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