Cultura em todos os sentidos

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No mundo da cultura e do entretenimento, também é preciso que olhos escutem e ouvidos vejam

Dentre as mudanças ocasionadas pela Covid-19, está o aumento do consumo de produtos audiovisuais. Com a quarentena, o estudo e o trabalho remoto, o tempo em casa aumentou. Seja acompanhar um jornal (pela TV ou rádio) enquanto trabalha no escritório improvisado em casa, seja assistir um filme, série, documentário ou novela, no fim do dia, para relaxar; o fato é que nunca se consumiu tantos produtos midiáticos. E na comunidade surda e cega não foi diferente. 

De acordo com uma pesquisa online, realizada pela Target Group Index Flash Pandemic, com 3 mil brasileiros de 16 a 75 anos, durante os dias 20 de abril a 7 de maio deste ano, 66% das pessoas declararam ver mais vídeos online (gratuitos); 56%, mais vídeos sobre demanda (pagos), e 56% disseram que a crise os incentivou a usar plataformas de vídeo chamadas. 

Enquanto persiste a necessidade do isolamento social, as telas e os aparelhos tecnológicos têm sido nossas janelas para o mundo exterior a nossas casas. Acontece que algumas janelas estão com telas, emperradas, bloqueadas. O conteúdo audiovisual como o nome já diz, é criado por e para a população ouvinte e visual, excluindo uma grande parcela da população da comunidade surda e cega. A acessibilidade de produtos culturais e de entretenimento para pessoas com níveis auditivos e visuais diferentes da maioria da população é uma discussão antiga mas, nem por isso, amplamente aplicada. 

Políticas Públicas 

A Lei Brasileira de Inclusão (LBI – Lei 13.146/15), sancionada em 2015, e em vigor desde 2016, estabelece, no Art. 42. que “a pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. Na mesma lei, está regulamentado o uso dos recursos de acessibilidade, como audiodescrição para cegos, intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e a presença de legendas ocultas.

A Agência Nacional do Cinema (Ancine), através da Instrução Normativa n° 116, estabelece que “projetos financiados com recursos públicos, geridos pela agência, devem contemplar legendagem descritiva, audiodescrição e Libras. Outra Instrução Normativa da Ancine, a de n°128, define que, a partir do dia 1° de janeiro de 2020, todas as salas de cinema devem oferecer aparelhos de acessibilidade para pessoas surdas ou com deficiência visual, sob pena de multa (não encontramos, até a data da publicação desta matéria, mais informações sobre o andamento dessa normativa). 

Acessibilidade

“Tornar a acessibilidade um pouco mais natural. E dizer para os produtores de conteúdo, não só de internet, mas de cinema e tv, que existe um público com deficiência e que pode ser um público consumidor”. Essa é a intenção do Canal Acessível, um projeto desenvolvido em parceria com a IQ Agenciamento e a ETC Filmes. O Canal, lançado em 2018, pega vídeos de youtubers parceiros e torna-os acessíveis para pessoas com deficiência auditiva e visual. 

Edgar Jacques, em 2019, atuando na peça “Um homem
comum”, de autoria própria (Arquivo pessoal)

Edgar Jacques (36) perdeu a visão aos três anos de idade, é ator, consultor em audiodescrição e divulgador do Canal. Ele explica como funciona o projeto: “esse Canal ficou em atividade durante um período. A gente fazia as audiodescrições, Libras e legendagem durante um tempo. Depois ele entrou em um processo em que a gente disponibilizou alguns outros materiais que a ETC Filmes tinha produzido dentro da casa”. Jacques ainda comenta que o Canal, atualmente, está sem conteúdos novos: “a gente tinha a esperança de que a aceitação fosse um pouco maior mas, talvez pelo material já ser conhecido, não ser nada inédito, a coisa não funcionou tanto quanto a gente gostaria”. 

Quanto ao processo de tornar os vídeos acessíveis, ele explica que, após receberem o vídeo selecionado, produzem um roteiro de audiodescrição, “que é descrever aquilo que não pode ser percebido pelo som”; finalizado o roteiro, é necessário que ele seja enviado para um consultor, que tenha deficiência visual e tenha estudado o recurso de acessibilidade e audiodescrição: “o roteiro vinha para mim, eu dizia se estava funcionando ou não e a gente mandava para o estúdio e faziam a gravação desse material”, explica Edgar Jacques. Da mesma maneira, o material ia para um intérprete de Libras e outros profissionais de legendagem, que é tudo aquilo que não pode ser percebido pela visão. 

Isso também ocorre na empresa Cinema Cego. Após concluída a audiodescrição de uma peça, um consultor cego faz a revisão e validação da faixa. O diferencial do Cinema Cego para outras produtoras de audiodescrição é a poeticidade de seus trabalhos. A audiodescrição tradicional preza pela neutralidade, mas a equipe do Cinema Cego entende que sempre há subjetividade no discurso. Jane Menezes, fundadora da instituição brasiliense, explica que iniciativas como essas são inclusivas e empoderadoras, ao passo que promovem a autonomia. E não apenas a comunidade surda se beneficia do serviço. "Os idosos são beneficiados, os disléxicos e pessoas com autismo também, porque na audiodescrição você trabalha muito a questão de tudo aquilo que não é verbal", conta Menezes. Uma pessoa autista, por exemplo, pode apresentar dificuldades para identificar expressões faciais, mas a audiodescrição a auxilia na tarefa. 

O problema é que esse elemento ainda não é difundido no Brasil. "São poucos os profissionais que o fazem e isso acaba deixando o serviço um pouco caro" - nas palavras de Jane. Tendo isso em mente, o Cinema Cego começou a disponibilizar cursos de capacitação. A esperança da equipe é que, com o aumento de profissionais no mercado, o serviço deixe de ser tão elitizado. 
Na segunda edição do seu livro “Desculpe, não ouvi”, Lak Lobato conta sua experiência de perder a audição, aos 9 anos, até o momento de voltar a escutar, com o uso do implante coclear (Arquivo pessoal)
Para quem não tem a visão como limitação, o acesso ao entretenimento é outra história. Lak Lobato (43) é blogueira, comunicadora e escritora. Aos nove anos, perdeu a audição. Durante 22 anos, se comunicou através da leitura labial e, há 11 anos, fez o implante coclear, recuperando 100% de discriminação auditiva. Há 11 anos ela escreve o blog “Desculpe, não ouvi”, onde trata de temas relacionados ao surdo oralizado (que se comunica através da língua portuguesa oral) e ao uso de aparelhos tecnológicos para a audição. 

Ela ressalta que a acessibilidade para os surdos oralizados difere da dos sinalizados (que se comunicam através das Libras). Para filmes, vídeos ou outros produtos audiovisuais “um áudio de boa qualidade e legenda já são suficientes para nós”. Nesse caso, o uso de intérpretes de Libras não os ajudam, uma vez que não têm familiaridade com a língua. Atualmente, as legendas têm se mostrado presentes em muitos conteúdos audiovisuais. Mas outros produtos culturais, como o teatro, ainda apresentam dificuldades, como comenta Lobato: “teatro é uma coisa totalmente inacessível para nós”. Para torná-lo acessível aos surdos oralizados, precisa-se do desenvolvimento de uma arquitetura acústica adequada. 

É o mesmo caso da assistente administrativa Isabella Mayorquin. A partir dos nove anos, ela foi perdendo a audição e, hoje, com 25, é completamente surda. Há dois anos é usuária do implante coclear, pois o aparelho de audição não fazia mais efeito. Por ser oralizada e adepta da leitura labial, nunca aprendeu Libras. Para ela, "falar que algo é acessível porque tem libras é uma falácia". Outro mito é de que o uso de aparelhos ou implantes bastam para que um surdo aproveite um produto cultural. Ela conta que, quando ainda usava o aparelho, foi a um show de comédia stand-up, mas precisou deixar o local por falta de acessibilidade: "fui embora logo no início chorando. A acústica do teatro não era boa, o teatro não tinha nenhuma estrutura para conectividade com os aparelhos, nenhuma estrutura para legenda ao vivo. Por fim, eu não conseguia compreender nada e fui embora." 

Da mesma forma, ainda que se trate de produções nacionais, em português, a presença de legendas não é dispensável. Nesses casos, vê-se a importância de dispor de uma diversidade de métodos inclusivos "e hoje, além de não se conhecer toda essa diversidade, há a ideia errada do famoso 'já estou fazendo isso e isso basta', sem se preocupar com a total inclusão" - conclui Isabella. 

"E hoje, além de não se conhecer toda essa diversidade, há a ideia errada do famoso 'já estou fazendo isso e isso basta', sem se preocupar com a total inclusão" - Isabella Mayorquin

A realidade para surdos sinalizados é outra. Matheus Salgado tem 26 anos e é formado em Filosofia. Nasceu surdo, após a mãe ter contraído rubéola durante a gravidez, e, além do aparelho auditivo e oralização, utiliza Libras para se comunicar. Na sua experiência, a procura por produtos adaptados à sua situação já se mostrou desanimadora. "Muitas vezes tenho que me virar e tentar leitura labial, assistir mais três vezes, pedir para amigos traduzirem, tentar várias formas" - ele relata. Salgado diz estar em um momento de querer aprender e desenvolver sua formação, mas se decepciona ao tentar "receber o conteúdo e informações rica, fico dependendo muito das pessoas para me ajudar". O jovem ainda testemunha que é comum que a publicidade de produtos como cursos online sejam chamativos e com legendas mas, após comprá-lo, não há acessibilidade. 

Inclusão e representatividade 

Livros, filmes, séries, desenhos, brinquedos, novelas. A presença de personagens cegos ou surdos nesses produtos ainda é carente e coadjuvante. O ator e consultor em audiodescrição, Edgar Jacques, comenta que “a gente é tão invisibilizado que não somos sequer considerados para os papéis que poderíamos fazer. Além da gente não ter oportunidade; quando você quer um ator cego, você quer falar sobre cegueira. Quando você quer um ator surdo, você quer falar sobre surdez. A gente não pode simplesmente ser o cego e ser o vilão da história ou ser o médico da história, ou ser o psicólogo da história. Quando a gente é convocado é sempre com esse viés, falar sobre inclusão”. 

O mundo do entretenimento é o das possibilidades ilimitadas. Das pessoas que voam. Que desaparecem num estalar de dedos. Que ganham superpoderes pela picada de um artrópode. “Por que não se pode um personagem cego fazer um personagem que enxerga durante um tempo e perde a visão? Por que não?” é o questionamento de Jacques para a escolha de atores videntes para papéis de personagens que perderão a visão ao longo da trama. 

Lak Lobato tem quatro livros publicados. Dois são voltados para crianças com deficiência auditiva, e reforça que “para as crianças, é muito importante essa representatividade”. Além dos livros, em um dos episódios do “Comentando na Janela” (quadro que produz no seu canal no YouTube), Lobato ensina as crianças a fazerem um implante de brinquedo para colocarem em suas bonecas. “É super importante para a criança ver que o implante é uma coisa natural”, explica. E comenta, ainda, que “o que a gente quer é isso: que mostrem personagens surdos oralizados, que usam aparelhos, que usam implantes, dentro de novelas, de filmes. Fomos ao delírio de ver uma criança usuária de implante coclear no Toy Story 4”.

“É super importante para a criança ver que o implante é uma coisa natural (...), o que a gente quer é isso: que mostrem personagens surdos oralizados, que usam aparelhos, que usam implantes, dentro de novelas, de filmes. Fomos ao delírio de ver uma criança usuária de implante coclear no Toy Story 4" - Lak Lobato

O cenário é de uma caminhada. A passos, ainda moderados, a cultura vai sendo democratizada, acessibilizada. Das telas, livros e palcos, passam a surgir personagens cegos e surdos, que possuem a deficiência como uma característica, mas nunca como definição de suas pessoas. Fora das telas, livros e palcos, pessoas com deficiência auditiva e visual tem a oportunidade de consumir produtos culturais e, o principal, entenderem, escutarem, verem, pelos olhos, ouvidos e o coração. 

#PraCegoVer:

Imagem 1: Foto ilustrativa. Ao lado esquerdo, há um vaso de planta. No centro, há um televisão ligada com o título 'cultura em todos os sentidos' e com uma intérprete dando oi em libras no canto superior da tela. Ao lado direito, há um rapaz de cabelos pretos e blusa verde, sentado em um sofá amarelo; ele segura um controle remoto na mão. O fundo do cenário é verde.

Imagem 2: Fotografia de uma peça de teatro. À esquerda, há um pufe preto com almofadas laranja e pretas. Ao fundo, tem cartazes com desenhos em tons azuis. Edgar Jacques está vestindo uma blusa vermelha de mangas compridas, calça de moletom azul, segura um celular na mão e usa fones de ouvido. Está em cima de um tapete em tons de vermelho e laranja. 

Imagem 3: Fotografia de Lak Lobato. Ela tem cabelos lisos, de comprimento médio, e cor castanha. Ela veste uma blusa preta com bolinhas brancas. Em uma das mãos, segura o aparelho de implante coclear. Na outra, segura seu livro intitulado “Desculpe, não ouvi”. Está na frente de uma parede rosa. 
Não deixe de conferir a primeira matéria que saiu da "Série de reportagens: deficiência auditiva e visual".
Reportagem de Ana Clara Marçal e Lara Bridi

Até a próxima!
Equipe CN.

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