Realidade mais chocante que ficção



Ao retratar a crueldade do assassinato da família Clutter, “A sangue frio” faz-nos duvidar da veracidade de tanta brutalidade 

Profundo. Forte. Sensível. Surpreendente. Truman Capote comprova na sua obra prima “A sangue frio” que a realidade pode ser muito mais assombrosa que a ficção. O livro pode não ser o primeiro do gênero New Journalism, mas é o mais influente. O jornalismo literário tem o mesmo ingrediente do jornalismo na preparação da sua narrativa: os fatos. Mas a forma de preparo diferencia-se por utilizar recursos literários na produção da história. 

Análise detalhada. Mergulho em profundidade. Avanço em documentação. Contemporâneo. Captação cálida do real. Essas são apenas algumas características desse gênero jornalístico. Assim, muito mais que a reprodução literal das entrevistas de suas personagens, Capote estava interessado em captar a alma delas, infiltrando-se nos seus pensamentos mais íntimos. E o faz com maestria. 

“A sangue frio” foi originalmente publicado em 1965 como uma reportagem dividida em 4 partes na revista New Yorker. Com o sucesso que fez entre os leitores, em 1966 foi transformada em livro. Truman Capote levou 6 anos para escrever a história do assassinato dos quatro membros da família Clutter. Ele dizia que não poderia finalizar antes de saber o que aconteceria com duas de suas principais fontes: os assassinos Perry Smith e Dick Hickcock. 

Fazendo um trabalho ímpar de jornalismo investigativo, Capote preocupou-se não em apenas contar essa história, mas em traçar um retrato das consequências que esse crime trouxe na pequena cidade do Kansas, onde seus moradores nem trancavam as portas antes de dormir. Agora, o cenário é de uma cidade que não perdeu apenas os vizinhos (família Clutter), mas também a confiança que tinham uns nos outros. 

Com riqueza de detalhes, Capote refaz todo o caminho dos assassinos na noite do crime, infiltra-se em suas famílias, com quem conversaram, com os amigos de cada membro da família Clutter e com os investigadores que estavam no caso na época. O autor chega a assistir a execução de um dos assassinos- Dick. Estava presente na morte de Perry, mas não teve estômago para ver até o fim. Há boatos de que o autor teria tido um romance com ele. Mas não há nenhuma prova de que isso seja verdade. 

Nessa narrativa singular entre jornalismo e literatura, Capote mostra empatia por todas as suas fontes. Assim, não trata o crime como um fato isolado, mas como dependente de um contexto. Desse modo, preocupa-se em ouvir cada versão de cada personagem. Percebe-se, no livro, as constantes conversas com os assassinos, abordando desde suas infâncias até seus pensamentos mais cruéis. É como se o autor nos injetasse no psicológico de cada um. Soma-se a riqueza de detalhes e descrições e o resultado é como se fossemos parte daquela comunidade do Kansas. 

Toda essa quantidade de entrevistas é, também, resultado da companhia que Truman Capote levou para essa empreitada: a também escritora Harper Lee, famosa pela obra “O sol é para todos”. Conhecido pela sua personalidade excêntrica, Capote teve muita dificuldade em conversar com suas personagens no início. Harper Lee foi, logo, uma grande facilitadora desse diálogo. 

Diferente de outros renomados autores do New Journalism, Truman Capote não tinha no jornalismo o seu principal ofício. Sempre fora escritor e viu nos modelos de produção do jornalismo uma boa oportunidade de fazer a vida. Isso, contudo, não tira a maestria e a atemporalidade dessa obra ainda nos dias atuais. Afinal, o traço característico do jornalismo literário é a transformação da atualidade em contemporaneidade. 

Todas essas características, no entanto, não privaram Capote de ser criticado. Alguns discutem quanto a veracidade do conteúdo das conversas de suas personagens. O autor recusou-se a usar o gravador, que, segundo ele, intimida as fontes e inibe o total foco em capturar as suas “almas”, através da observação de suas manias, trejeitos, fala etc. 

Outra crítica que o fazem é quanto a sua omissão perante os criminosos e o oportunismo de suas mortes para o sucesso da obra. Esses defendem que Capote, durante todo o período de estudo do caso e entrevistas, conseguiu coletar uma infinidade de informações ausentes até mesmo para as autoridades que cuidavam do assassinato na época. Assim, defendem que Capote, portando todas essas informações, não tentou fazer uso delas para repensar o julgamento e a culpa dos acusados. Mais: deixou que a pena fosse cumprida sem qualquer intervenção para que o livro tivesse mais sucesso. 

A verdade é que com críticas, omissão, oportunismo ou não, “A sangue frio” é um marco na produção do jornalismo literário. Transitando entre as mais variadas temáticas, a exemplo da pena de morte, a obra é leitura essencial. Mais ainda, é atemporal. 

Ficha técnica
Tradução: Sergio Flaksman 
Páginas: 440 
Editora: Companhia das Letras 
Lançamento: 16/09/2003

Resenha de Ana Clara Marçal

Até a próxima!

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